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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA: DO SÍMBOLO À REALIDADE

Discurso do cardeal Cañizares na Universidade da Santa Cruz de Roma
 
ROMA, terça-feira, 6 de março de 2012 (ZENIT.org)- Reproduzimos o discurso do cardeal Antonio Cañizares, feito ontem (5), durante a apresentação do livro A concelebração eucarística - Do símbolo à realidade, de dom Guillaume Derville, na Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma.

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“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e os levou até um monte alto, onde se transfigurou diante deles. Suas vestes se tornaram extraordinariamente brancas, a ponto de ninguém na terra podê-las deixar com tal brancura. E eis que apareceram Elias e Moisés, que conversavam com Jesus. Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: Mestre, como estamos bem aqui! Façamos três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias” (Mc 9, 2-5).
 
Ontem, segundo domingo da quaresma, a liturgia proclamava as palavras que acabo de ler. Palavras que podem servir de marco, de introdução, nesta apresentação do livro de dom Guillaume Derville, A concelebração eucarística - Do símbolo à realidade [tradução livre do título original em francês, ndr].
 
Quando evocamos o relato da transfiguração, brotam espontâneas em nossa mente as palavras glória, fulgor, beleza. São expressões que se aplicam diretamente à liturgia. Como Bento XVI nos lembra, a liturgia é intrinsecamente vinculada com a beleza. “A verdadeira beleza é o amor de Deus, que se revelou definitivamente no mistério pascal” (BENTO XVI, Sacramentum caritatis, 3).
 
A expressão “mistério pascal” sintetiza o núcleo essencial do processo da Redenção, é o cume da obra de Jesus. Por sua vez, a liturgia tem como conteúdo próprio essa “obra” de Jesus, porque nela se atualiza a obra da nossa Redenção. Daí que a liturgia, como parte do mistério pascal, seja uma “expressão eminente da glória de Deus e, de certa forma, um aproximar-se do céu à terra. O memorial do sacrifício redentor carrega em si os traços daquele resplendor de Jesus, do qual Pedro, Tiago e João nos deram testemunho quando o Mestre quis se transfigurar diante deles, a caminho de Jerusalém (cf. Mc 9,2). A beleza, portanto, não é um elemento decorativo da ação litúrgica; é um elemento constitutivo, já que é um atributo do próprio Deus e da sua revelação. Conscientes disso tudo, precisamos manter uma grande atenção para que a ação litúrgica resplandeça de acordo com a sua própria natureza” (ibidem).
 
Eu gostaria de ressaltar precisamente as últimas palavras do texto que acabo de citar, porque, na minha opinião, elas introduzem um tema delicado, que, ao mesmo tempo, é o centro do estudo de dom Derville. Vamos relê-las: “A beleza, portanto, não é um elemento decorativo da ação litúrgica; é um elemento constitutivo, já que é um atributo do próprio Deus e da sua revelação. Conscientes disso tudo, precisamos manter uma grande atenção para que a ação litúrgica resplandeça de acordo com a sua própria natureza”.
 
Isto quer dizer que a liturgia, e, dentro dela, a concelebração, será bela quando for verdadeira e autêntica, quando nela resplandecer a sua própria natureza. Este é contexto da questão colocada pelo Romano Pontífice diante das grandes concelebrações: “Para mim”, diz o papa, “permanece um problema, porque a comunhão concreta na celebração é fundamental; por isso, eu acredito que ainda não se encontramos realmente a resposta definitiva. Também suscitei esta pergunta no sínodo passado, mas a resposta não foi encontrada. Fiz ainda com que levantassem outra questão sobre a concelebração massiva, porque, por exemplo, se mil sacerdotes concelebram, não se sabe se ainda fica mantida a estrutura que o Senhor quis” (BENTO XVI, Encontro com os sacerdotes da diocese de Roma, 7 de fevereiro de 2008).
 
Trata-se precisamente de manter “a estrutura que o Senhor quis”, porque a liturgia é um dom de Deus. Não é fabricada por nós, homens. Não está à nossa disposição. Aliás, “com o mandamento ‘Fazei isto em memória de mim’ (cf. Lc 22,19; 1 Co 11,25), ele nos pede corresponder ao seu dom e representá-lo sacramentalmente. O Senhor expressa com estas palavras, por dizê-lo assim, a esperança de que a sua Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom, desenvolvendo sob a luz do Espírito Santo a forma litúrgica do sacramento” (BENTO XVI, Sacramentum caritatis, 11).
 
Por este motivo, “devemos aprender a compreender a estrutura da liturgia e por que ela é articulada assim. A liturgia se desenvolveu ao longo de dois milênios e, mesmo depois da reforma, não é algo elaborado apenas por alguns liturgistas. Ela é a continuação de um desenvolvimento permanente da adoração e do anúncio. Assim, para sintonizá-la bem, nós precisamos entender essa estrutura desenvolvida ao longo do tempo e entrar com a nossa mens na vox da Igreja” (BENTO XVI, Encontro com os sacerdotes da diocese de Albano, 31 de agosto de 2006).
 
O estudo completo de dom Derville se posiciona neste contexto. Ele nos ajuda a escutar o Concílio Vaticano II, cujos textos, de acordo com as palavras do beato João Paulo II, “não perdem o seu valor nem o seu esplendor. É necessário lê-los de maneira apropriada. Que eles sejam conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do magistério, dentro da tradição da Igreja” (JOÃO PAULO II, Carta ap. Novo millennio ineunte, 6 de janeiro de 2001, 57).
 
O concílio decidiu ampliar a faculdade de concelebrar com base em dois princípios: esta forma de celebração da Santa Missa manifesta adequadamente a unidade do sacerdócio e, ao mesmo tempo, foi praticada até agora na Igreja tanto do Oriente quanto do Ocidente. Daí que a concelebração, como indica ainda a Sacrosanctum Concilium, se encontraria entre aqueles ritos que convinha restabelecer “de acordo com a primitiva norma dos santos padres” (CONCÍLIO VATICANO II, Sacrosanctum Concilium, 50).
 
Neste sentido, é importante entrarmos, ainda que brevemente, na história da concelebração. A panorâmica histórica de dom Derville, embora seja um breve resumo, como ele modestamente observa, nos basta para enxergarmos lacunas, que manifestam a ausência de dados definitivos sobre a celebração eucarística nos primeiros tempos da Igreja. Ao mesmo tempo, e sem se deixar levar por um ingênuo “arqueologismo”, ele oferece suficientes elementos para afirmarmos que a concelebração, segundo a genuína tradição da Igreja, tanto oriental quanto ocidental, é um rito extraordinário, solene e público, ordinariamente presidido pelo bispo ou por seu delegado, rodeado pelo seu presbyterium e por toda a comunidade dos fiéis. Por outro lado, a concelebração cotidiana, em uso entre os orientais, e na qual concelebram somente presbíteros, assim como a concelebração “privada” em substituição das missas celebradas individualmente ou more privato, não se encontram na tradição litúrgica latina.
 
Por outro lado, eu considero que o autor acerta plenamente ao abordar as razões de fundo que o concílio menciona para a extensão da concelebração. Uma ampliação da faculdade de concelebrar, que deveria ser moderada como descobrimos ao ler os textos conciliares. E é lógico que seja assim, já que a concelebração não tem por objetivo resolver problemas logísticos nem de organização, mas tornar presente o mistério pascal manifestando a unidade do sacerdócio que nasce da eucaristia. A beleza da concelebração, como dizíamos no começo, implica a sua celebração na verdade. E assim, a sua força significativa depende do respeito e da vivência das exigências que a própria concelebração comporta.
 
Quando o número de concelebrantes é muito alto, um aspecto essencial da concelebração fica velado. A quase impossibilidade de sincronizar as palavras e os gestos, que não são reservados ao celebrante principal, o afastamento do altar e das ofertas, a falta de ornamentos para alguns concelebrantes, a ausência de harmonia de cores e de formas, tudo isso pode obscurecer a manifestação da unidade do sacerdócio. E não podemos esquecer que é precisamente esta manifestação o que justificou a ampliação da faculdade de concelebrar.
 
No distante ano de 1965, o cardeal Lercaro, presidente do Consilium ad exsequendam constitutionem de sacra liturgia, enviou uma carta aos presidentes das Conferências Episcopais alertando sobre este perigo: considerar a concelebração como um modo de superar dificuldades práticas. E recordou o quanto podia ser oportuno promovê-la se ela favorecesse a piedade dos fiéis e dos sacerdotes (Notitiae 1, 1965, 257-264).
 
É este o último aspecto que eu gostaria de mencionar, muito brevemente. Como afirma Bento XVI, “recomendo aos sacerdotes a celebração diária da santa missa, mesmo sem participação de fiéis. Esta recomendação está em consonância com o valor objetivamente infinito de cada celebração eucarística. Além disso, é motivada pela sua singular eficácia espiritual, porque, se a santa missa é vivida com atenção e com fé, ela é formativa no sentido mais profundo da palavra, já que promove a configuração com Cristo e consolida o sacerdote na sua vocação” (BENTO XVI, Sacramentum caritatis, 80).
 
Para cada sacerdote, a celebração da santa missa é a razão da sua existência. Ela é, ela tem que ser, um encontro personalíssimo com o Senhor e com a sua obra redentora. Ao mesmo tempo, cada sacerdote, na celebração eucarística, é Cristo mesmo presente na Igreja como Cabeça do seu corpo, e age em nome de toda a Igreja “quando apresenta a oração da Igreja e quando oferece o sacrifício eucarístico” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1552). Diante da maravilha do dom eucarístico, que transforma e configura com Cristo, só nos cabe a atitude do estupor, da gratidão e da obediência.
 
O autor nos ajuda a captar com mais profundidade e clareza esta realidade admirável. Ao mesmo tempo, com a leitura deste livro, ele nos lembra e nos motiva a levar sempre em conta que, além da concelebração, existe a possibilidade da celebração individual e a participação na eucaristia como sacerdotes, mas sem concelebrar. Em cada circunstância, a questão é entrar na liturgia, procurar a opção que mais facilite o diálogo com o Senhor, respeitando a estrutura da própria liturgia. Encontramos aqui os limites de um direito a concelebrar ou não, que diz respeito também ao direito dos fiéis de participar em uma liturgia em que a ars celebrandi torna possível a sua actuosa participatio. Tocamos pontos que têm a ver com o que é justo ou não. O autor, aliás, faz referência também ao Código de Direito Canônico.
 
Não me resta mais que agradecer a dom Derville e às editoras Palabra e Wilson & Lafleur pelo livro que hoje tenho o prazer de apresentar. Acho que esta leitura oferece um exemplo da justa hermenêutica do Concílio Vaticano II. “Trata-se de ler as mudanças indicadas pelo concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico do rito, sem introduzir rupturas artificiosas” (BENTO XVI, Sacramentum caritatis, 3). E constitui uma ajuda e um estímulo para a meta que o Santo Padre recordou recentemente à Congregação que presido: “Dedique-se principalmente a dar um novo impulso à promoção da Sagrada Liturgia na Igreja, conforme a renovação querida pelo Concílio Vaticano II a partir da constituição Sacrosanctum Concilium” (BENTO XVI, Motu proprio Quaerit semper, 30 de agosto de 2011).
 
Tenho certeza de que este livro contribuirá para que o Ano da Fé “seja uma ocasião propícia para intensificar a celebração da fé na liturgia, de modo particular na Eucaristia” (BENTO XVI, Motu proprio Porta fide, 9).
 
Antonio Card. Cañizares Llovera
Prefeito da Congregação para o Culto Divino e para a Disciplina dos Sacramentos

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